O preconceito e a necessidade de entender o outro
Era uma simples foto de férias no Facebook. Nela, Daniel Motta, jornalista de 29 anos, posava em Pipa, uma das principais praias do estado do Rio Grande do Norte.
Tudo corria normal, com muitas manifestações carinhosas de amigos. Até que um deles se excedeu: “Depois da Lei Áurea, tudo é possível”, dizia o comentário que, ao ultrapassar os limites da maldade, tornava-se a prova, irrefutável, de um crime.
Daniel é negro, paraibano e não está sozinho. Ele é apenas um dentre milhares de pessoas que sofrem com atitudes preconceituosas todos os dias. Nos últimos anos, vários casos estamparam as capas dos jornais brasileiros e ficaram famosos.
O racismo contra o goleiro Aranha, do Santos Futebol Clube, e o ódio destinado aos nordestinos nas eleições presidenciais de 2014 foram os mais emblemáticos. Mal parece que, dia 3 de julho de 1951, Getúlio Vargas já teria sancionado a primeira lei que tornava crime qualquer tipo de discriminação racial no Brasil.
Mais tarde, em 1989, o então presidente José Sarney ampliou a abrangência. A partir daí, pessoas que tivessem atitudes preconceituosas por motivo de etnia, religião e procedência nacional também seriam criminalizadas.
“Serão punidos os crimes resultantes de discriminação (...) por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, diz o artigo 1º da Lei nº 7.716/89.
Embora de lá para cá tenham se passado mais de 25 anos, punições para tais delitos são muito, muito raras no país. Para piorar, esse tipo de comportamento não é uma exclusividade tupiniquim.
Já há muito tempo é possível acompanhar inúmeras situações análogas pelo mundo: italianos e alemães ao homenagearem nazistas, americanos e franceses ao discriminarem estrangeiros, russos e espanhóis ao atirarem bananas em jogadores de futebol africanos e por aí vai.
Foras da lei
O mais desesperador é saber que mesmo a Constituição atual já está ultrapassada. Ela não faz menção a preconceitos muito importantes. Como é o caso, por exemplo, de um dos grupos que mais sofre na atualidade: lésbicas, gays, bissexuais e travestis.
Discriminar tais populações ainda não é crime por aqui. E isso é grave. Segundo o Grupo Gay da Bahia – ONG responsável por computar assassinatos da população LGBT –, um homossexual é morto a cada 28 horas no país, dado que coloca o Brasil na liderança em mortes de transexuais no relatório da Transgender Europe.
O discurso de ódio aos LGBTs é tão comum que, no debate do primeiro turno à presidência da república, foi possível presenciar algo lamentável. Um dos candidatos sentiu-se suficientemente à vontade para utilizar, em rede nacional, expressões de muito mau gosto ao se referir a homossexuais, o que lhe rendeu duras repreensões no encontro seguinte.
“Fosse crime, o senhor sairia daquele debate algemado”, rebateu uma de suas adversárias.
A “proteção” do online
O eventual anonimato da internet também é preocupante por estimular comportamentos discriminatórios. Segundo Leonardo Zanatta, advogado especialista em Direito Digital, esse já é o meio onde mais ocorre o preconceito.
“O que é feito no mundo virtual repercute no real”, pontua ele. A rede é, portanto, meio, não fim. Por isso, ser preconceituoso ali ainda rende pouquíssimos problemas. Além disso, a segurança da distância física contribui muito para que até pessoas esclarecidas se utilizem desse expediente para tal.
Não à toa, foi cunhada nos últimos anos a expressão bullying, que designa o comportamento discriminatório de uma ou muitas pessoas sobre outra. Nas escolas, o assunto deixou o plano da eventualidade para se tornar um problema real. As crianças sofrem ataques também quando já estão em casa por meio das redes sociais virtuais.
O que fazer?
A auto-observação é o primeiro e fundamental exercício, visto que os papéis se confundem. Possivelmente, em algum momento da vida, o preconceituoso será vítima e vice-versa. Em ambos os lugares, há sofrimento e é recomendável buscar ajuda especializada em terapias e afins.
Mas de onde vem essa vontade incontrolável em julgar os outros sem ao menos conhecê-los? A psicopedagoga Mariana Saraiva tem um palpite.
Para ela, o preconceito é natural do ser humano. “Cada um tem os seus (preconceitos). Só não é justo fazer o outro sofrer por algo que não é dele. Portanto, identifique-os, guarde para si e trabalhe-os em terapia ou da maneira que prefira. Eles desaparecerão a partir do momento em que você se dedicar a entendê-los”, diz.
Já a parte que sofre a discriminação, no geral, tem seu emocional completamente afetado. Sente raiva e, muitas vezes, vergonha. Esse constrangimento chega ao ponto da vítima sequer seguir com suas queixas.
A psicóloga Marisa Abreu explica que o famoso “deixa pra lá” pode resolver a situação por um período, mas não é o ideal. "Além de ser impossível guardar de maneira saudável essas mágoas, não compartilhá-las impede que os outros possam amadurecer com relação ao assunto”, afirma.
Lina Cavalcante é exemplo disso. A jornalista, hoje com 33 anos, passou por maus bocados quando ainda era uma criança. Cearense, ao mudar de Fortaleza para São Paulo, teve que enfrentar barras bem pesadas.
Ela não entendia porque tudo o que era feio, cafona e pobre, para os paulistanos, era considerado “baiano”. Não entendia porque tudo o que parecia defeituoso, na opinião deles, vinha do Nordeste. E não compreendia o total desconhecimento das pessoas e falta de interesse por entender as singularidades da sua terra.
Até que, certa vez, discutiu com um amigo da escola que a chamou de suja. Ao questioná-lo sobre a ofensa, ele emendou: “Só porque você é baiana". Aquilo foi a gota d'água. De tanta tristeza, Lina teve uma séria disfunção da articulação temporomandibular (ATM), que travou-lhe a boca.
Após esse episódio, com a ajuda da família, teve que aprender a enfrentar o problema de outra maneira. “Continuei defendendo o que acredito, mas sem deixar que me machuquem tanto. Contra o preconceito, eu uso a minha inteligência, minha força, meu humor e todos os meios de denúncia que tiverem ao meu alcance”, desabafa.
Lina encontrou a melhor forma de se proteger e agir como uma legítima cidadã. “Só dessa maneira, a sociedade tomará ciência da gravidade dos fatos e do quão intenso deve ser o combate a eles”, explica Zanatta. Um boletim de ocorrência pode ser feito em qualquer delegacia. Em alguns estados, é possível gerar o B.O. até pela internet.
Para fazer a denúncia, o governo federal disponibiliza o Disque 100, mais conhecido como Disque Direitos Humanos. Basta ligar 100 de qualquer aparelho telefônico do Brasil. A chamada é gratuita, pode ser feita em caráter de sigilo, articula sua queixa com organizações da sociedade e outros órgãos públicos - como a Polícia Federal - e ainda monitora os resultados. Saiba mais sobre o serviço no site.
Tudo o que falta
Sandra Pereira, 41 anos, revisora de textos, foi outra vítima desse mal. Morou 15 anos em Salvador e, lá, fez graduação em Letras, pós-graduação em Língua Portuguesa e especialização em Alfabetização Infantil. Ao voltar para São Paulo, foi desqualificada em uma entrevista de emprego.
O motivo? Todos os seus cursos haviam sido feitos na Bahia. Disse-lhe a contratante, em tom de deboche: “Nessa escola, ao contrário do que você fazia em Salvador, terá que trabalhar”.
Foram muitas as decepções até conseguir se realocar na metrópole. Mas Sandra seguiu em frente, serena. Para ela, tudo isso só mudará quando as pessoas entenderem que qualquer cidade, país ou nação é feita de pessoas, com diferentes saberes, cores e tantas peculiaridades.
“A compreensão disso engloba um entendimento muito mais amplo, de que a diferença não é uma escala de valores. Ninguém é melhor ou pior. Ser diferente é simplesmente não ser igual. Chegaremos a isso algum dia, é o que espero”.
Nós também, Sandra. Nós também.