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Home  ›  Ciência

Sexo não binário


HENRIQUE ALVES DE ASSIS, 25 ANOS, PUBLICITÁRIO: Sou bissexual desde sempre. A primeira lembrança que tenho de me sentir atraído pelo sexo feminino é de quando meu pai me levou a uma oficina mecânica e vi um calendário de mulheres nuas, eu devia ter uns 6 anos. Na mesma época, numa banca de jornal, lembro de ter folheado uma revista de homens e gostado. Quando sabem que sou bissexual, as meninas não aceitam. Ficam com medo de que eu possa não conseguir ir para a cama com elas. A falta de liberdade sexual no mundo me incomoda. Todos os meus projetos são para acabar com o machismo, para acabar com coisas que limitam a sexualidade. (Foto: Victor Affaro/Editora Globo)
Você gosta de gatos ou de cachorros? Prefere chá ou café? Homens ou mulheres? O tempo todo precisamos fazer escolhas excludentes. Pesquisas na área da psicologia cognitiva mostram que fazemos isso para simplificar a complexa realidade em que vivemos. O cérebro do homem cria atalhos com base em informações para reduzir ao máximo a ambiguidade. Mas, pensando bem, é perfeitamente normal gostar de gatos e de cachorros, beber café e chá e – por que não? – interessar-se por homens e mulheres ao mesmo tempo. O problema é que toda vez que algum especialista desafia o sistema binário que divide o mundo em héteros e homossexuais a sociedade não reage muito bem. No começo do século passado, o psicanalista Sigmund Freud escandalizou o planeta com o conceito de que todas as pessoas nascem bissexuais. Segundo Freud, a homossexua­lidade seria o reflexo de um trauma, e não uma orientação sexual – uma noção claramente equivocada. Mas ele foi bem certeiro ao dizer que a sexua­lidade não se re­su­me aos órgãos genitais, mas envolve tam­bém aspec­tos psicológicos, sociais e comportamentais.Tradição na Grécia Antiga e glamour nos anos 1970, a bissexualidade nunca foi tão estudada quanto hoje – mas continua fonte de muito preconceito entre héteros e também entre homossexuais
mais fluida do que parece. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos pela Universidade Cornell e divulgada há quase um ano indicou que a bissexualidade está relacionada à curiosidade sexual e à busca de estímulos diferentes. Algo que a designer mineira Bela Bordeaux, de 24 anos, já sabe há algum tempo. Quando era pequena, além de se sentir atraída por garotos, ficava de olho nas meninas, mas tinha me­do de sofrer discriminação. “Só quando entrei na faculdade e tive contato com outras pessoas é que fui me descobrir de verdade”, diz Bela. “Hoje sou solteira e me considero livre para me relacionar com qualquer pessoa, independentemente de gênero.”
BELA BORDEAUX, 24 ANOS, DESIGNER: Quando eu era pequena, pensava: não é possível que eu seja sapatão. Não queria nem experimentar, tinha medo de ser lésbica. Só quando entrei na faculdade e tive contato com outras pessoas é que fui me descobrir de verdade. Começou quando eu namorava um rapaz e nós permitimos abrir o relacionamento. Hoje sou solteira e me considero livre para me relacionar com qualquer pessoa, independentemente de gênero. Existem n tipos diferentes de combinações, assim como existem n tipos de pessoas. Muita gente fica insegura quando tento explicar o que acontece. Se não entendem, um beijo, até mais. (Foto: Victor Affaro/Editora Globo)

A história da bissexualidade remonta à Grécia antiga (veja linha do tempo), mas a primeira escala científica da sexualidade foi criada muito tempo depois pelo norte-americano Alfred Kinsey. Em 1948, ele publicou a escala Kinsey no livro Comportamento Sexual do Macho Humano. Ela varia de zero (exclusivamente heterossexual) a seis (totalmente homossexual). Além de revelar, com base em suas pesquisas, que 37% dos homens norte-americanos já haviam se relacionado com pessoas do mesmo sexo, Kinsey foi o primeiro a afirmar que todos podem ser mais ou menos heterossexuais. A revelação caiu como uma bomba na conservadora sociedade dos Estados Unidos da época. “Os homens não representam apenas duas populações distintas, de héteros e de homossexuais”, escreveu Kinsey na conclusão do livro. “O mundo não é dividido em carneiros e cabras.”
Apesar de ter sido fundamental para o estudo da sexualidade humana, hoje essa escala é considerada ultrapassada porque não leva em consideração o gênero. No livro Reconheça: As Vozes dos Homens Bissexuais, Robyn Ochs, uma das mais conhecidas ativistas do meio hoje, descreve sua própria escala, aplicada em seus workshops nos Estados Unidos. Num questionário, os participantes podem escolher se querem responder às perguntas com base em sexo ou em gênero. Robyn então questiona como eles se identificam em termos de orientação sexual, se fantasiam com homens ou mulheres, que fetiches tinham aos 16 anos e quantas orientações sexuais tiveram até agora. Desde que foi criado, a pesquisadora já aplicou o questionário mais de 1,5 mil vezes, e boa parte dos participantes responde “duas” à última questão.
A funcionária pública e ativista Natasha Avital, de 28 anos, se identifica com isso. Quando tinha apenas 9 anos ela se sentiu atraída por uma mulher com quem dançou em um daqueles bailinhos típicos da infância. O impacto foi tão grande que naquela noite Natasha sonhou com a mulher. Na mesma época, começou a achar os homens bonitos também. Quando os colegas de escola descobriram seu gosto por meninos e meninas, Natasha ficou mal. “Não sentia culpa, mas não queria sofrer bullying”, conta. “Quando contei para o meu namorado que era bi, ele ficou na neura de ser trocado por uma mulher.”
Outra forma de estudar a orientação sexual passa por histórias como a do jogador de hóquei que se sente sexualmente atraído por mulheres mas só se apaixona por homens. Ou a do homem que se masturba com pornografia gay, mas só se envolve com mulheres. É com esse tipo de caso que trabalha Ritch Savin-Williams, pesquisador e professor de psicologia do desenvolvimento humano na Universidade Cornell. “Achamos que as pessoas são gays, héteros ou bissexuais, mas existem muitas variações, muitos indivíduos que não são estritamente atraídos por homens ou mulheres”, disse ele a GALILEU. “Minha pesquisa é focada no enorme grupo de pessoas que não são totalmente gays nem totalmente heterossexuais.”
CARINA ROCHA, 21 ANOS, ESTUDANTE: Eu tinha uns 15 anos quando comecei a achar as meninas atraentes e me interessei por uma amiga próxima, com quem tive uma relação. Até então, só havia me sentido atraída por homens. Fiquei bastante confusa, porque nunca parei de ter atração hétero e também não me sentia lésbica. Aos 20 anos, comecei a conhecer o movimento LGBT e o feminista, e entendi que não havia problema em nada disso. Agora tenho um relacionamento aberto com um homem e posso me envolver com mulheres também. Mas sempre tive dificuldade de encontrar parceiras, porque sou negra e não correspondo ao padrão de beleza de lésbica/bissexual alternativa, descolada, de cabelo lisinho jogado para o lado. (Foto: Victor Affaro/Editora Globo)

EU TARZAN, VOCÊ JANE
Savin-Williams coordena uma pesquisa sobre o que os olhos dizem acerca da atração ­sexual. Como é impossível controlar a dilatação da pupila, mede-se o processo de expansão dessa parte dos olhos em héteros, gays e bissexuais enquanto eles assistem a filmes pornôs mostrando homens ou mulheres se masturbando. “Alguém pode dizer ‘sou hétero’, mas ao medirmos a dilatação da pupila a história é outra”, afirma o pesquisador. Para complementar a pesquisa, a equipe de Savin-Williams mede a excitação dos órgãos genitais. Uma parte significativa dos voluntários apresentou atração sexual misturada, ou seja, ficou excitada com homens e com mulheres. “Quando comecei o estudo, pensei: há, agora vou descobrir quem está no armário”, diz o professor. “Mas cheguei à conclusão de que a sexualidade é algo bem mais complexo do que se imaginava.”
O próximo desafio da equipe da Universidade Cornell é descobrir o que acontece com a sexua­lidade das mulheres heterossexuais. Nas experiências, nada funcionou com elas: zero excitação com qualquer tipo de pornografia. Há duas explicações para o fenômeno. Uma é que pouco se sabe sobre os estímulos sexuais adequados para mulheres. A segunda é uma antiga teoria evolucionista sobre papéis de gênero, segundo a qual as mulheres são naturalmente bissexuais. Um estudo de psicologia evolutiva da Universidade de Scranton, na Pensilvânia, sugere que uma sexualidade feminina mais fluida pode ter ajudado nossas antepassadas a defender a prole. Sem um Tarzan, mulheres estupradas ou viúvas podem ter se relacionado com outras mulheres para ter com quem dividir a criação dos filhos. Outro estudo liga a bissexualidade feminina ao ciclo menstrual – somente no período fértil elas se sentiriam mais atraídas pelos homens.
São teorias respeitadas pela ciência, mas é preciso ter cuidado. Nem todas as mulheres são bissexuais, e as que são podem virar alvo de fetiche. “Muitos homens acham que uma mulher lésbica só não achou o cara certo, e quando ela é bissexual pensam que está tudo liberado e tentam se aproveitar”, explica Bela Bordeaux, que já sofreu assédio de um cliente quando ele ficou sabendo de sua bissexualidade.
Há ainda outra teoria evolucionista, segundo a qual a espécie humana caminha para a bissexualidade como resultado da evolução natural. O autor da teoria, Umberto Veronesi, ex-ministro da Saúde da Itália e pioneiro no tratamento do câncer de mama, diz que homens e mulheres estão produzindo menos hormônios e que no futuro haverá uma “preguiça reprodutiva” que fará do sexo mera demonstração de afeto.
NATASHA AVITAL, 28 ANOS, FUNCIONÁRIA PÚBLICA: Eu me senti atraída por uma mulher aos 9 anos. Dançamos em uma festa, e sonhei com ela. Foi nessa época também que comecei a achar os homens bonitos. Aos 12 anos, li uma matéria da Marie Claire sobre bissexualidade, e aquilo teve um impacto muito grande em mim. Só que quando eu estava na oitava série o pessoal da escola descobriu, eu fiquei mal. Não sentia culpa, mas não queria sofrer bullying. Quando contei para o meu namorado que era bi, ele ficou na neura de ser trocado por uma mulher. Uma amiga ouviu do ginecologista que ela devia parar, que jamais seria feliz com isso. Já escutei de mulheres hétero no trabalho que essa era minha arma para conseguir mais homens, e uma lésbica tentou me expulsar da parada gay porque gosto de pênis. (Foto: Victor Affaro/Editora Globo)

ARMÁRIO²
A dificuldade de aceitar a bissexualidade está presente até na comunidade LGBT – apelidada de GGGG por minorias dentro da minoria. Henrique Alves de Assis, criador do site sobre sexo 2depaus, vive a discriminação na pele. “Os gays acham que é uma fase ou que não tenho coragem de sair do armário como homossexual”, conta ele. Uma pesquisa divulgada no final do ano passado pela Fundação de Campanha por Direitos Humanos comprova esse desconforto: 40% dos jovens da comunidade LGBT se identificam como bissexuais, mas se sentem deslocados no grupo. É por isso que menos de um terço dos bissexuais revela sua orientação sexual, segundo uma pesquisa de 2013 do instituto Pew Research.
Para Robyn Ochs, a resistência dos homosse­xuais contra os bissexuais tem a ver com a dinâmica humana de definir quem são “eles” em relação a “nós”. No livro Tribos Morais: Emoção, Razão e a Brecha ente Nós e Eles, o psicólogo Joshua Greene, da Universidade Harvard, explica que lidar com situações problemáticas ativa o córtex pré-frontal dorsolateral, que recebe os impulsos mais emocionais do cérebro e, consequentemente, fortalece a ideia de “nós × eles”. “Com tanto debate preconceituoso sobre cura gay, o movimento se torna refratário a explicitar possibilidades menos rígidas de sexualidade. É como se os bissexuais colocassem questões complexas demais para os tempos conservadores em que vivemos”, diz Regina Facchini, pesquisadora de gênero da Unicamp.
A boa notícia é que as novas gerações dão sinais de mudança. “Os jovens hoje estão demonstrando uma identidade sexual que nem sempre corresponde a gay, hétero ou bi, eles estão inventando seus próprios termos para o que sentem. E deixam claro que não são atraídos pela genitália de alguém, sua masculinidade ou feminilidade”, explica Savin-Williams. Se há um princípio evolutivo sólido, é o de que o ambiente seleciona os que se adaptam com mais facilidade. Hora de rever os preconceitos.

500 a.C. 
Na Grécia antiga, o conceito de heterossexual/homossexual não existia. As relações homossexuais faziam parte da afrodisia, ou amor, que incluía os dois sexos.
500 d.C. O imperador Justiniano proibiu relações entre pessoas do mesmo sexo. Ele usou a Bíblia para afirmar que a cidade de Sodoma fora destruída por causa da homossexualidade.
1000 Os imperadores do Japão antigo se relacionavam com jovens escravos sexuais – e com suas mulheres, é claro. A homossexualidade também era comum entre os samurais.
1300 Eram queimados na fogueira aqueles que praticassem a sodomia, termo derivado do nome Sodoma e interpretado na Idade Média sobretudo como sexo anal.
1492 Com a descoberta das Américas, fica conhecida a mitologia dos índios da América do Norte, para quem transgêneros, bissexuais e andróginos eram abençoados por terem “dois espíritos”.
1920 Sigmund Freud afirma que o ser humano é hermafrodita enquanto está no útero da mãe e nasce bissexual.
1948 Alfred Kinsey lança sua escala, e pela primeira vez a bissexualidade é reconhecida como uma orientação sexual cientificamente comprovada.
1974 Depois da revolução sexual dos anos 1960, a bissexualidade tornou-se algo “descolado”. Revistas como Time e Newsweek escrevem sobre o “bissexual chique”, enaltecendo celebridades andróginas como David Bowie.
2015 A partir dos anos 1990, famosos saem do armário em bando, e a bissexualidade passa a ser mais aceita na cultura pop atual. Porém os desafios da compreensão no cotidiano persistem, inclusive na comunidade LGBT.
BISSEXUAL: Pessoa que sente atração por homens e mulheres ou mais de um gênero.
ASSEXUAL: Pessoa que não sente qualquer tipo de atração sexual.
CISGÊNERO: Indivíduo que se identifica com o gênero designado a ele quando nasceu.
TRANSGÊNERO: Indivíduo que não se identifica com o mesmo gênero do nascimento.
 (Foto: Victor Affaro/Editora Globo)
PANSEXUAL : Pessoa que sente atração independentemente de sexo e gênero. Um exemplo é a cartunista Laerte (no feminino, como ela prefere), que se identifica como pansexual, apesar de também se encaixar na definição de transgênero. Por ser a orientação mais versátil, o termo é o mais controverso do glossário. Há uma discussão em andamento sobre se a palavra “bissexualidade” deveria ser abolida por reforçar a ideia binária dos sexos, ou se é a mesma coisa que “pansexual” (amar independentemente de gênero). Além disso, há o problema da interpretação do termo. O prefixo “pan”, de raiz grega, significa “tudo”, então muitos acham que pansexuais se sentem atraídos por qualquer coisa, como árvores ou cachorros. A ideia (errada) ficou popular quando o cantor Serguei se assumiu como pansexual no Programa do Jô e disse que já havia se masturbado com uma árvore. Era só uma piada, ok?
 (Foto: Divulgação)

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